O humanismo existencialista como projeto moral

O que o sistema moral de Jean-Paul Sartre propõe é um rompimento com qualquer determinismo para que o homem se entenda como responsável na medida em que seu existencialismo visa desidratar qualquer tipo de determinismo, pois os conceitos que guiaram a sociedade europeia nas ideais de liberdade e humanismo viviam, em sua época, um cenário de profundo desencanto no período que sucedeu as grandes guerras do século XX[1], principalmente após a Segunda Guerra Mundial e as consequências radicais do fascismo.


Tudo que era a priori e propunha um humanismo clássico que coloca o homem como um fim em si mesmo estava em descrédito em sua perspectiva, tal argumentação pode ser observada na obra que deu com o título de O Existencialismo é um Humanismo[2] para tornar a sua filosofia algo de alcance popular.
Com isso, observamos que a renúncia a um determinismo é parte de uma empreitada maior que visa colocar o homem fora de sistemas que impeçam a reflexão antes de agir, que torne-o escravo de contextos e situações e tire qualquer autonomia em sua vida, uma doutrina formulada para ressignificar algo que havia sido suprimido por forças maiores em uma Europa pessimista e arruinada. Trata-se de um projeto de uma nova moral que reconstrua o homem perante a tudo que já havia sido postulado e foi proposto como fundamento de um sistema que visasse a autonomia humana e a liberdade e tinha o intento de tornar a vida possível, não podia se relacionar com o naturalismo como acusavam alguns e não se tratava de uma negação da realidade, como os católicos afirmavam, tampouco propunha um quietismo devido à contemplação, algo da prática burguesa, como os comunistas denunciavam. (1973, p. 9 e 10)  
As acusações que recebia de diversas vertentes de pensamento se relacionavam principalmente ao fato do existencialismo exaltar o indivíduo em uma tarefa que parecia esperar resgatar o sujeito em detrimento aos mais diversos fatores que tentavam justificar o que havia ocorrido na França e no resto da Europa durante a Segunda Guerra, pois o próprio Sartre havia participado da guerra e em sua trajetória literária e filosófica tentava demonstrar as consequências de um pessimismo gerado por tal acontecimento.
Assim, surge a necessidade de uma ontologia do sujeito que tem a liberdade como principal fundamento, não se tratando de uma liberdade política e social, mas ontológica no sentido de que não precisava ser conquistada, pois o homem, ao nascer, já estava condenado a esta.

[...] o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.  (1973, p.15)

Ora, essa condenação leva ao homem partir de uma subjetividade pura, pois o homem deve ter consciência dessa liberdade partindo do cogito cartesiano, do “Eu penso” e assim fundar uma dignidade da ação que corresponde a uma necessária responsabilidade, isso implica no fato da liberdade também resultar em uma escolha, dando consciência ao homem em todos os momentos. O homem é livre, pois ele se inventa em suas escolhas e isso tem uma implicação moral, pois ele também está condenado a se inventar, estando desamparado sem nenhum determinismo, sem nenhum Deus. (1973, p. 16)
Para Sartre, quando se concebe um Deus, este sempre o vem como um artífice superior e se admite, principalmente em Descartes e Leibnez, que a vontade humana acompanha a vontade de Deus, pois Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Deste modo, o conceito de homem se assemelha com a de qualquer objeto fabricado, pois foi produzido segundo técnicas e uma concepção. Ao falar dos filósofos ateus do século XVII, o existencialista critica a noção de natureza humana que coloca o homem como um exemplo particular de algo universal. (1973, p. 12)
Ao invés de natureza humana, já que não há Deus para concebê-la, o conceito de condição humana foi utilizado para demonstrar um fim do determinismo como um conjunto de limites colocados, mesmo em relação à história, pois as situações históricas variam e mesmo que o homem venha a nascer em uma sociedade pagã ou cristã, senhor feudal ou proletário, nada irá alterar a necessidade de estar no mundo, de lutar, de viver com os outros e ser mortal. Por ser tratar de um projeto moral, a relação com o outro não é ignorada e mesmo que o homem seja um projeto individual, ele só irá se completar quando se relaciona com outro projeto. Não se pode ser nada se o outro não se reconhecer também como algo separado do reino dos objetos. O valor universal dessa escolha está no fato de que o homem escolhe a si próprio e assim acaba escolhendo toda a humanidade.
A noção de projeto é muito importante nesse sistema, pois somente os objetos “são” e o ser humano será um “vir a ser”, pois o homem tem mais dignidade que uma pedra no fato de ter consciência para se lançar no futuro e sempre será o que tiver projetado para ser, por isso a máxima que define o existencialismo na qual a existência precede a essência só serve ao homem, pois ele não será escravo de qualquer paixão e nenhum sentimento irá  definir uma ação, será sempre o oposto, o sentimento será resultado da ação, logo a paixão também.
Nesse sistema moral, emerge a importância do conceito de responsabilidade na medida que “o covarde é culpado por ser covarde”, pois ele se faz covarde e o herói se faz herói na medida em que existe sempre uma possibilidade para deixar de ser. (1973, p.20). Tal afirmação coloca o conceito de compromisso à tona, pois todas as escolhas que são feitas acarretam em um compromisso exatamente pela implicação em outrem que irá acarretar.
Deste modo, podemos observar uma intenção que é a de atribuir responsabilidade humana aos acontecimentos que fundaram a barbárie moderna, pois o debate era muito forte no século XX sobre como que a sociedade que fundou o iluminismo e o humanismo foi capaz de permitir que o fascismo acontecesse, muitas tentavam atribuir a determinada cultura e outros ao contexto que gerou aquele episódio, Sartre mostrou que todos eram responsáveis e não havia como se inibir da culpa por qualquer fator, mesmo não falando categoricamente disso no texto que analisamos, o contexto histórico favorece tal interpretação.
As consequências tiradas disso são radicais na medida em que afirma que somente um existencialismo ateu será capaz de trazer a autonomia humana, pois mesmo o materialismo dos marxistas era determinista. Criticou o ateísmo de seu tempo por usar do conceito de Deus como fundamento ético e lançou mão de uma moral que não é geral, criticando a moral laica e para isso usa a expressão heideggariana de desamparo e propõe que se tire todas as consequências da não existência de Deus, ou seja, como seria possível uma moral geral sem Deus e natureza humana? Não há sinais no mundo que possam indicar um sistema de leis morais de caráter universal, afirmou Sartre.
Em uma concepção existencialista, o homem surge no mundo e somente após isso se define, sendo medido por suas ações, responsável por suas escolhas e obrigado a assumir um compromisso. Ora, nem o humanismo clássico resiste a tal processo, pois se o homem for um fim em si mesmo, ele já está definido e será cultuado, um dos fundamentos do fascismo, assim propõe outro sentido de humanismo, que é o humanismo existencialista, no qual o homem sempre estará fora de si, sempre estará se construindo de acordo com o projeto escolhido. Não pode haver nada transcendental, pois só existe o universo humano e o homem é o único que legisla sobre si, resultando um verdadeiro humanismo.
O desencanto é motor dessa moral, pois não houve regra capaz de impedir tudo o que havia ocorrido, nem Deus e nem noção materialista alguma que pudesse fundamentar a ação humana, mesmo a ética kantiana antecipa o conteúdo do concreto e forma uma moral abstrata, no entanto, Sartre não explica como que a minha ação irá impactar toda a humanidade senão por sua potência universal, desta forma não há um rompimento com a ética de Kant. A grande virtude é tentar tirar qualquer determinismo e isso faz com que de fato o desespero seja algo determinante na vida humana, pois o homem nunca esteve tão sozinho.
  

Bibliografia

SARTRE, Jean-paul. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

PENHA, João da. O que é existencialismo. Brasília: Editora Brasiliense, 1984.




[1] Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Segunda Guerra Mundial (1937-1945)
[2] Lançada em 1946 e rechaçada pelo próprio autor posteriormente, a obra cumpre uma tarefa de sintetizar boa parte de seu sistema exposto na obra O Ser e o Nada (1943), por isso é utilizada como fonte para uma breve argumentação

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